A opinião está para o público, nos tempos modernos, como alma está para o corpo (...). A opinião é um grupo momentâneo e mais ou menos lógico de juízos que, respondendo a problemas actualmente postos, se encontram reproduzidos em numerosos exemplares em pessoas do mesmo país, do mesmo tempo, da mesma sociedade» (Tarde, apud Rodrigues, 2011, p. 154)¹
[...] persuadidos estamos de que a imprensa é um grande bem, talvez a mais forte alavanca do bem no mundo moderno. [...] As nações mais bem governadas são exatamente aquelas, onde maior é a frutificação e a pujança do jornalismo, flora intelectual, que não medra, renovando o oxigênio à atmosfera política, e absorvendo-lhe os elementos irrespiráveis, senão nas regiões onde o gênero humano desenvolve os seus melhores espécimens. (Barbosa, apud Romancini, 2004, n.p.)²
À medida que o historiador do século XX se aproxima do presente, fica cada vez mais dependente de dois tipos de fontes: a imprensa diária ou periódica e os relatórios económicos periódicos e outras pesquisas, compilações estatísticas e outras publicações de governos nacionais e instituições internacionais. (Hobsbawm, 1996, p. 11)³
Quando, em 1901, Gabriel Tarde publicou A Opinião e a Multidão insistia na ideia de que a opinião, formada por informação e comunicação, assegurando o fluxo de ideias, pessoas e bens materiais e simbólicos, constituía para o público a função que a alma desempenha para o corpo. A opinião constitui uma dinâmica colectiva que, desde a segunda metade do século XVIII, se beneficiou do crescimento do universo do leitor beneficiário da alfabetização, do fomento editorial do livro, particularmente do pequeno livro, da emergência do periódico. No decurso de oitocentos, correspondendo a melhorias técnicas na edição e circulação de livros e periódicos; ao crescimento exponencial de leitores escolares e não escolares; ao fomento de bibliotecas; ao associativismo partidário, sociocultural, profissional, foi sendo constituída uma cultura de massas. No universo da imprensa periódica, desde final de oitocentos, que estava em curso uma ruptura, em resultado de um complexo modernizador que combinava os avanços técnicos, a constituição de um campo empresarial especializado e a emergência da profissão de jornalista, que passou a congregar a função de informar com a formação de opinião e o jornalismo de reportagem. Formando uma unidade comunicacional e cultural, orientada para o grande público, a moderna imprensa periódica tornou-se o que veio a ser designado de 4º poder.
Com efeito, estavam então em curso transformações irreversíveis que incluíam um assinável progresso na modernização social, técnica, cultural, bem como a formação de novos países e uma democratização política associada a novas repúblicas. Tais mudanças eram acompanhadas da constituição da opinião pública, condição essencial para a informação, a participação e a mobilização cívicas. Seja pela tradição do Iluminismo em que as elites se preocupavam em informar e dinamizar os distintos segmentos da população, seja pela dinâmica decorrente da associação mútua e reivindicativa por parte de sectores profissionais, ou seja, muito particularmente, pelo empenho dos movimentos ideológicos e partidários, a imprensa periódica passou a constituir um meio essencial de aculturação, modernização, intervenção. Interdependentes da opinião pública, da informação e da comunicação de ideias, enfim da afinidade partidária e da participação cívica, os regimes republicanos foram exímios no fomento da imprensa periódica.
No Brasil, os últimos tempos do Império e a implantação da República trouxeram uma intensificação do debate político e ideológico, acentuando a crítica ao imobilismo em que havia caído o Império e contrapondo o ideário de progresso alimentado pela imprensa partidária, com destaque para a imprensa republicana. São Paulo estava a tornar-se uma grande metrópole cultural, económica, urbana, industrial, federando pólos de desenvolvimento assentes na produção de café e na indústria de transformação. Situada no eixo que, por Campinas conduzia a São Paulo, Piracicaba era um desses centros onde se fazia sentir um desenvolvimento acelerado em resposta ao crescimento demográfico e ao dinamismo cultural e económico.
No republicanismo brasileiro ressaltam duas orientações fundamentais: federalismo e progresso. Piracicaba à semelhança de outros municípios da grande São Paulo, nomeadamente Campinas, constituía um centro urbano, económico, cultural, administrativo onde o elemento burguês, enriquecido, letrado e politizado de que fazia parte um núcleo de fazendeiros se afirmou, controlando os principais dispositivos do poder e os instrumentos de sociabilidade. Essas elites tiraram proveito do associativismo corporativo e partidário e da constituição de uma opinião pública a partir da imprensa periódica. Além do Colégio Piracicabano, um grupo de personalidades, ligadas ao partido republicano, fundou, em 1882, a Gazeta de Piracicaba. Um e outro foram órgãos centrais nos destinos socioculturais, políticos e identitários da municipalidade. Comum a outros periódicos municipais, a denominação de Gazeta recuperava o sentido tradicional de um periódico compósito e variado na temática, associado a uma elite letrada empenhada em cumprir os desígnios de Iluminação e ordenação da população. A Gazeta de Piracicaba consignava matérias espirituais, científicas, políticas com matérias oficiosas e de costumes. Estava investida de uma centralidade e de uma oficialidade que lhe conferiam uma autoridade de palavra e uma mobilização cívica e partidária. Cumpria um estatuto de órgão oficioso, noticioso e constitutivo de um ideário e de uma opinião pública. Parte significativa do financiamento era produto de donativos e de assinaturas.
Uma das temáticas que mereceu um destaque regular, por parte da Gazeta de Piracicaba foram os assuntos referentes à educação e à instrução, não só relativos ao município formado pelo núcleo urbano e pelo mundo rural, quanto a informação nos planos regional, nacional e internacional.
Em face dessa pluralidade e da sistematicidade da informação, um grupo de Investigadores, coordenado pelo Professor Cesar Romero A. Vieira, procedeu, numa primeira fase ao inventário da informação sobre o Colégio Piracicabano e tem vindo, numa fase posterior, cuja realização tem sido assegurada também pelo insano e criterioso labor da Professora Carolina Martin, a inventariar de modo exaustivo e criterioso, tornando-a disponível para futuras investigações, toda a informação sobre educação e instrução, contida nos mais de 3 mil exemplares da Gazeta de Piracicaba, editados no período compreendido entre 1882 e 1903, tal é o Fundo Digitalizado a que tem tido acesso.
O Banco de Dados, assim constituído tem um formato de divulgação dos resultados em meio digital, em forma de site, assim como, em um link disponível no site do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba (IHGP). É um contributo de particular relevância para a História Contemporânea, vindo justificar as proclamações, frequentemente retomadas, por, entre outros historiadores, Marc Ferro e Eric Hobsbawm, de que não será possível fazer a história contemporânea, nomeadamente a do século XX, sem recurso à imprensa periódica.
A interpretação destes dados ficará à mercê de outros investigadores, sendo certo que o rigor deste inventário permite olhares atemporais e olhares inscritos na geografia e na cronologia dos factos. Com efeito, estão bem patentes na Gazeta de Piracicaba dados sobre o passado, dados sobre o tempo dos factos e dados para um olhar, ao tempo, prospectivo. Para o estudo do município de Piracicaba, este Banco de Dados converte a imprensa periódica numa fonte histórica muito fecunda em informação, ao tempo que deixa transparecer a força centralizadora e agregadora dos processos de mudança em curso. Piracicaba era então um município formado por parte urbana e um extenso território rural, voltado à produção agrícola extensiva, comandado por uma burguesia letrada e orientado por um ideário republicano. Afirmou-se como um dos pólos mais dinâmicos na construção do Brasil Moderno e na constituição de São Paulo, como uma das regiões mais progressivas do continente americano.
Em boa hora esta equipa de investigadores, sob coordenação do Professor César Romero, passou a consagrar o que de melhor sabe fazer em benefício de uma causa humanística, científica e cívica – a preservação e a divulgação do património escrito, como alimento da educação e da consciência histórica das novas gerações.
Lisboa, outubro de 2024
Justino Magalhães
Professor catedrático jubilado do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa.
¹ Gabriel Tarde (2006). L’Opinion et la Foule, Paris, Editions du Sandre (original de 1901). Apud Adriano Duarte Rodrigues (2011). O Paradigma Comunicacional. História e Teorias. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian/ Serviço de Educação e Bolsas.
² Rui Barbosa (2003). A imprensa e o dever da verdade. São Paulo, 4ª. Edição, São Paulo: EDUSP, apud Richard Romancini, (2004). Rui Barbosa: a imprensa livre como bem público. Revista PJ:BR, Jornalismo Brasileiro, Edição de 03-1º semestre, 2004. Acessível em https://pjbr.eca.usp.br/arquivos/monografia3_c.htm. Consulta em 11 de Outubro de 2024
³ Eric Hobsbawm (1996). A Era dos Extremos. História Breve do Século XX, 1914-1991. Lisboa: Editorial Presença.